Tâmisa, Danúbio, Sena, Nilo, Hudson, todos esses nomes nos rementem imediatamente a cidades especificas. Isso porque discorrer sobre a história do urbanismo é também abordar a relação entre a urbe e o rio, já que este é um elemento natural fundamental em torno do qual muitas cidades se formaram. Tal fato se deve, principalmente, ao caráter utilitário dos cursos d’água que, além de delimitar – e consequentemente proteger – as cidades, serviam para o abastecimento hídrico e transporte de matérias-primas e produtos. O rio assumia, portanto, a função de um estruturador urbano, oportunizando atividades nas suas margens e favorecendo o desenvolvimento econômico e social.
A partir desse momento, cria-se uma relação pautada pela necessidade de domesticação da paisagem e dominação da força da água, como pode ser visto já no século V a.C., nas planícies mesopotâmicas do rio Nilo, onde surgiram pequenas vilas com complexos sistemas de irrigação, demostrando os primeiros esforços do homem em regular o acesso e uso da água.
Séculos mais tarde, com o crescimento exacerbado, vilas se tornaram grandes cidades e os rios, em meio ao caos urbano, passaram a sofrer com os conflitos dessa proximidade. A revolução industrial foi um período determinante para que os primeiros impactos das práticas poluidoras atingissem os leitos. Além disso, a diminuição da permeabilidade do solo e da vegetação ribeirinha fizeram com que os níveis da água oscilassem, ocasionando períodos de cheias e inundações. Neste processo, muitas cidades passaram a dar as costas para os rios, classificando-os como espaços insalubres.
Em tal contexto, que data a primeira metade do século XIX, preceitos do higienismo passam a ser aplicados nas cidades. Assoladas por doenças e pestes, acreditava-se que a origem das enfermidades estava nos fatores ambientais e, com isso, era fundamental proteger os três elementos básicos: o ar, o solo e a água. Dessa forma, o poder público passou a adotar algumas estratégias elementares, como afastar indústrias, matadouros e cemitérios das áreas centrais da cidade. Os rios que estavam inseridos em meio aos centros urbanos também foram inclusos nessa remodelação mediante a construção de sistemas de canalização, drenagem, tratamento de água, entre outros.
Segundo historiadores, Napoleão III em sua visita a Londres em meados do século XIX encontra uma cidade em processo de remodelação com investimentos públicos significativos nas obras de prevenção instaladas às margens do rio Tâmisa. Os esforços procuravam suprimir os miasmas e águas decompostas que, segundo acreditava-se na época, eram responsáveis pelas epidemias. Paris precisava seguir esse exemplo e, com isso, Haussmann recebeu o apoio do imperador para transformar a capital, o que incluía, claro, o famoso rio Sena.
A cidade francesa, assim como muitas, não somente se desenvolveu às margens do rio que a corta, como também o incorporou em sua dinâmica urbana, voltando a maioria dos seus monumentos e construções icônicas a ele, como a Torre Eiffel na rive gauche (margem esquerda) ou o Museu do Louvre na rive droite (margem direita). Com isso, o famoso cenário retratado inúmeras vezes em obras de arte, como os quadros de Monet, não pode ficar alheio às remodelações urbanas. Com o aval do imperador e sob os comandos de Haussmann, suas margens receberam contenções e revestimentos no decorrer do século XIX que visavam adequar sua estrutura aos preceitos de salubridade e segurança.
Entretanto, apesar da proximidade imprescindível dos rios, assim como foi citado anteriormente, nem todas as cidades da época abraçaram seus cursos d’água como a capital francesa. Viena é um exemplo de cidade que, mesmo tendo seu desenvolvimento atrelado ao rio Danúbio, decide se desenvolver longe das suas margens apesar da importância do seu porto fluvial. A capital austríaca apresenta uma abordagem diferente daquela de Paris ao implementar seus edifícios mais importantes, ou seja, a área histórica nobre, no interior da zona delimitada pela Ringstrasse, a avenida do anel. Vale ressaltar que o arquiteto austríaco Camillo Sitte foi um crítico fervoroso desse modelo de urbanização que segregava a cidade, dividindo-a em duas partes distintas, manifestando inclusive sua insatisfação em um livro intitulado A Construção das Cidades segundo seus Princípios Artísticos, de 1889.
Guiadas por diversos motivos, muitas cidades – antigas como Viena ou recentes – ignoraram seus córregos e rios no decorrer dos anos, canalizando-os ou encobrindo-os completamente. Sem embargo, hoje em dia, nota-se o início de uma nova fase nesse relacionamento entre cidades e seus rios. A própria capital austríaca tem recebido diferentes estratégias urbanas para a incorporação do Danúbio à paisagem urbana. Isso se dá, principalmente, pela ênfase nas questões ambientais, cada vez mais presentes nos debates urbanos atuais, ocasionando o resgate de sistemas hídricos como unificadores socioespaciais, marcando eixos de novos desenvolvimentos urbanos e investimentos imobiliários. Observa-se, portanto, uma valorização dessa paisagem urbana com a incorporação de funções que extrapolam as unicamente utilitaristas consideradas na sua origem, possibilitando novos usos e novas apropriações.
Indo ao encontro dessa nova agenda para um urbanismo pautado na sustentabilidade, muitos projetos de canalização dos rios estão sendo revistos com o intuito de retomar essa conexão. Entre eles, o projeto de revitalização do rio Cheonggyecheon, em Seul na Coreia do Sul, recebeu bastante destaque há alguns anos. Originalmente, o rio funcionava como um dreno para a cidade, porém, com o crescimento urbano, o canal teve seu tamanho reduzido até o ponto em que toda sua extensão foi coberta por uma grande via. Após anos de discussão, em 2002 iniciaram-se as obras para restauração do rio como um córrego aberto que incluíram, além da demolição da via e retomada do curso d’água, o aumento de 20% da sua largura original, levando em conta possíveis cheias. A conexão com o rio foi fortalecida por meio da implementação de instalações artísticas, parques e corredores que atravessam o rio, nova vegetação ao longo da sua extensão e um centro comunitário.
Transformado em um parque linear, o Cheonggyecheon recebe o fluxo médio de 60 mil pessoas por dia. A mudança de perfil também causou valorização de 50% dos imóveis ao seu redor, refletindo a nova relação que se estabelece entre as cidades e seus rios no século XXI.
No curso da história das cidades, a presença da água se transformou de um caráter essencialmente utilitarista, relacionado ao valor socioeconômico, para um caráter imaterial e, até mesmo, sensorial, no qual se valoriza a paisagem idílica dos rios e suas potencialidades para atividades de lazer, reforçando também a proximidade da natureza como um requinte determinante no contexto caótico e “artificial” da atualidade.
Este texto tem como principal referência o artigo “Rios e Cidades: uma longa e sinuosa história”, escrito por Márcio Baptista e Adriana Cardoso em 2013.